segunda-feira, 22 de março de 2010

Após a tempestade

Naquele dia ela acordou, olhou para os lados e percebeu como sua vida era perfeita. Tudo lá, bonitinho, no exato lugar que deveria estar, milimetricamente planejadinho. Melhor impossível.
Tinha tudo a sua volta, emprego, amigos, família, lar, amor, dinheiro, e planos, muitos planos. Mal podia acreditar naquele enredo, que mais lhe parecia cenário de cinema, com aquela casinha branca em um imenso gramado verde, impecável, e um balanço pendurado no galho robusto de uma enorme amendoeira, num indo e vindo ritmado, e sobre ele duas longas tranças acariciando o vento, e vice-versa. Dentro da casa aquele cheirinho de eucalipto, vasos coloridos enfeitando a janela, pãozinho fresco com manteiga derretida, na fresta da cortina entreaberta um feixe de sol realçava ainda mais toda aquela atmosfera de felicidade, que naquele momento de tão real se tornara palpável. E o dia transcorreu assim com a beleza e serenidade habitual de tantos outros, irretocável aos seus olhos.
Ao cair a noite a lua nova realçava um imenso céu de estrelas, tantas vezes admiradas a dois, que mais pareciam fogos de artifício, uma comemoração gratuita da natureza. Mas a profecia daquele lindo dia de sol anunciado há pouco, na noite estrelada anterior, daquela vez não se cumpriu. Não entrava mais luz pela fresta da cortina. O balaço havia sido derrubado pela grande tempestade que surpreendeu a madrugada. O cheiro de chuva e terra molhada não abriram espaço para o eucalipto tomar o seu lugar. A tempestade da madrugada devastara de forma tão abrupta e repentina o seu castelo de sonhos. Ela não tinha forças para acordar. Não queria ter de enfrentar a realidade de que sua vida nunca fora tão perfeitinha da forma como por tantos anos ingenuamente acreditou. Mas ela não podia ficar ali deitada, de olhos fechados, como se ainda dormisse na mesma vida de antes da tempestade. Ela queria fugir, ficar só, pensar e entender em que parte tinha perdido o controle sobre aquele roteiro que até então lhe parecia tão bem escrito e interpretado. Por que amanheceu um dia frio, escuro e chuvoso se na noite anterior foi dormir sob o céu de estrelas? E ela levantou. Não tinha escolha. Era tarde demais para encontrar o pãozinho fresco na padaria. Naquela manhã teve de se contentar com um pedaço de pão amanhecido e um café tão amargo como lhe parecia sua nova vida.
Olhou-se no espelho e seus olhos estavam ainda mais verdes. Mas a cor era realçada pelas lágrimas. Era um verde marcante, profundo...e triste.
E ela continuou a acordar tarde por um bocado de tempo. Não conseguia mais servir aquele pãozinho fresco com manteiga derretida. Acho que na verdade ela não queria relembrar o gosto delicioso de uma vida que não mais lhe pertencia. Talvez por isso acordasse tarde.
Mas o tempo não parou para contemplar seu sofrimento, ele foi correndo como sempre, nem mais rápido, nem mais devagar. Igual. E toda manhã, mesmo contrariada, ela tinha de se levantar e viver mais um dia daquela nova vida, após a tempestade.
Ela tentava duramente reencontrar aquela força que por tanto tempo lhe pareceu desnecessária. O caminho, dantes feito de pedrinhas brancas e simétricas estava agora inundado por aquela triste tempestade, irregular e imprevisível.
Mas ela foi andando, mesmo sem saber qual seria seu destino. E em cada dia chuvoso e cinza que amanhecia ela experimentava novas sensações, conhecia novos sentimentos, sofria, chorava, e tentava se encaixar naquele enredo incerto, tão afetado por aquela tempestade.
A casa já não lhe parecia tão bonita. As paredes brancas traziam agora os vestígios do forte período de chuvas. Ela não tinha vontade de limpá-las como antes. O gramado também não era mais tão verde. Estava marrom, sem brilho.
Mas o sol foi aos poucos aparecendo novamente. Vez ou outra se escondia, por horas, por dias, ou semanas. Tanto faz. O que importa é que ele também freqüentemente aparecia, ainda que para uma breve visita.
Até que um dia, nessa nova vida após a tempestade, aquele feixe de sol entrou novamente pela fresta da cortina. E ela acordou. E era cedo. No caminho percebeu que alguém havia consertado o balanço. Voltou com um pão quentinho da padaria. Sentou-se olhando a manteiga no centro da mesa. E sentiu medo.

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